Esmeralda, diretora e ex-professora da Escola Raimundo Gouveia, em um subúrbio de Salvador (BA), conta sua experiência com Reginaldo, um menino cego que foi seu aluno dos 11 aos 14 anos
David Oliveira
er professor de Reginaldo foi, sem dúvida, a experiência mais difícil em minha vida profissional. No pprimeiro período que passou comigo, ele ainda não estava cego. Mas já não podia contar muito com sua visão, e essa situação indefinida tornava as coisas ainda mais difíceis.
A experiência de colocar alunos cegos para estudar em classes não especiais estava no início, na Bahia, e Reginaldo Anunciação, 11 anos, foi uma primeiras crianças a receber instrução fora do Instituto Cegos. Na escola foi encaminhado a uma classe de alunos com problemas de aprendizado, que normalmente ficavam repetindo dois ou três anos a primeira série. Mas logo sua esperteza se tornou evidente e foi transferido para uma classe comum – a minha.
Quando soube que iria ser professora de um cego, fiquei abalada. Meus 34 alunos já traziam problemas suficientes. Mas preparei os meninos para receberem Reginaldo, explicando a eles seu problema e mostrando o quanto Reginaldo iria precisar da nossa ajuda para não se sentir "diferente", excepcional. Foi bonito de se ver. Reginaldo ainda não conhecia a escola. Tinha dificuldade para se movimentar pelos corredores, para ir ao banheiro, mas os colegas o ajudavam sem o menor constrangimento. Aos poucos, fomos nos adaptando a ele e ele a nós; e a timidez, que atrapalhava bastante no início, desapareceu completamente. Reginaldo havia se tornado mais um membro do grupo.
Eu já havia explicado à turma que algumas coisas iriam mudar em nossa rotina, e todos esperavam com a maior paciência que repetisse para Reginaldo um determinado assunto uma, duas, três vezes. Ele copiava em braille. Mas, como ainda não tinha prática, era lento e a gente tinha que respeitar seu ritmo. Com poucos meses de aula, eu já pegava Reginaldo batucando na carteira, aproveitando as minhas saídas da sala. Ficava alegre em perceber que ele estava se adaptando bem, mas o repreendia como a qualquer outro, sempre pensando em melhorar ainda mais essa adaptação. Restava saber se, depois de alfabetiza- do, ele poderia acompanhar a 2ª série.
Ele era o segundo filho numa família de cegos
Eu conversava muito com as crianças e também com Reginaldo. Lembro que, na chegada da primavera, as árvores do Gouveia se modificavam. A amendoeira, por exemplo, renovava todas as suas folhas e eu sempre procurava levar os alunos até a janela para observar aquela transformação. Às vezes, a gente até apostava para ver quem acertava o dia em que as folhas da amendoeira iriam cair. Um dia, por mero esquecimento, deixei passar. E Reginaldo sentiu falta daquela aula de Botânica improvisada. Por iniciativa própria, levantou, foi até a janela e de lá gritou: "Pró! Venha ver as folhas da amendoeira como estão cor-de-rosa!" Apesar de ainda enxergar um pouco, era óbvio que não estava vendo as cores da amendoeira. Reginaldo coloria com dificuldade seus de- senhos e só usava tons fortes como vermelho, preto, azul. Mas sua atitude demonstrava o quanto ele estava interessado em tudo o que acontecia ao seu redor.
Passei também a me interessar por tudo o que acontecia com ele. Numa de nossas conversas, depois da aula, fiquei sabendo um pouco da vida do menino fora da escola – e descobri que se tratava de uma pequena tragédia. Reginaldo era o segundo filho de uma família em que todos já estavam cegos, vítimas de glaucoma congênito. Primeiro foi o pai, depois a mãe e, finalmente, ele e o ir- mão. Mesmo após várias operações, a Medicina não tinha conseguido resolver o problema de Reginaldo que, desde pequeno, foi criado por um casal vizinho, sem filhos, que lhe dava muito carinho. Antes de completar um ano em minha classe, Reginaldo ficou completamente cego. Eu já estava preparada para esse dia porque vi e acompanhei o crescimento de suas dificuldades. Mesmo assim, foi difícil. A aula tinha terminado quando uma funcionária veio me avisar que uma aluno meu ainda não tinha saído da escola e estava agarrado ao portão. E corri para lá. Reginaldo estava se debatendo no portão, sem conseguir encontrar a saída. Senti que o momento havia chegado. Me aproximei com calma, peguei sua mão e levei-o para casa. Reginaldo caminhava calado. Então. Lembrei da história que havia me contado na véspera – quando tinha conseguido montar e andar numa bicicleta, para pavor de sua mãe – e lhe disse: "Ora, Reginaldo, você nunca preciosu da visão para fazer tudo o que os outros fazem". Ele apertou a minha mão e sorriu.
Reginaldo foi meu aluno e meu professor
No final do ano, Reginaldo já estava totalmente adaptado. Subia com facilidade as escadas do colégio, às vezes até correndo, e ia a todas as suas dependências sem precisar de ajuda. E o melhor: passou de ano. Não acompanhei seu desenvolvimento durante um período letivo inteiro. Mas, na 3ª série, ele voltou a ser meu aluno. Agora, uma monitora da Secretaria de Educação vinha semanalmente avaliar seu progresso e passar para o alfabeto braille todos os exercícios que fazíamos em sala. Até as provas ela preparava antes em braille e, depois, traduzia as respostas para corrigirmos. Aquilo, no entanto, me incomodava: como é que eu podia acompanhar seu rendimento se a monitora só vinha de sete em sete dias? Como ia ficar sabendo se ele estava escrevendo certo as palavras? Foi aí que resolvi estudar o braille. Procurei o Departamento de Apoio aos Deficientes Visuais (acho que o nome é esse), da Fundação Cultural do Estado. Fui encaminhada a uma moça chamada Jerusa, que conversou bastante comigo, me explicou o que era o braille e, já no primeiro dia, me ensinou alguns sinais. Só no dia seguinte percebi que ela era cega. Aquilo redobrou minha intenção de ajudar Reginaldo e, na verdade, foi com ele que mais aprendi, na própria sala de aula. Quando eu escrevia alguma coisa errada, Reginaldo caía na gargalhada e me corrigia – e, nessa troca de papéis, fomos ficando ainda mais próximos. Desse período em diante, a Secretaria colocou à disposição da escola uma máquina de datilografar em braille, e cada exercício dado em aula era imediatamente traduzido para Reginaldo.
Não se envergonhava de falar sobre seus sentimentos
Ele tornou a passar de ano e, na 4ª série, eu era novamente sua professora. A Secretaria continuou mandando monitores para dar assistência a Reginaldo e acompanhar seu desenvolvimento. A monitora dessa 4ª série vivia admirada. E não se cansava de comentar com os colegas o desenvolvi- mento de Reginaldo, bem diferente dos demais deficientes visuais matriculados em outras escolas. Então, fui chamada à Secretaria para dar meu depoimento. Todos queriam saber como Reginaldo tinha se desenvolvido tanto, sem repetir nenhuma série e sempre tirando boas notas, revelando-se um dos melhores alunos da classe. Em redação, elas diziam, era até possível admitir que Reginaldo fosse bom. Mas em Matemática...
Na verdade, eu não tinha muito o que dizer, a não ser que tanto eu como a turma o tratávamos como uma criança "normal". Tão normal que, naquele mesmo ano, chegou a me dizer que "estava apaixonado e ia se casar". Tinha, então, 14 anos e seus sentimentos eram próprios da idade, sendo que Reginaldo falava deles sem o menor constrangimento. De outra vez, me pregou uma surpresa ainda maior, pedindo à mãe que lhe desse no Natal uma máquina fotográfica. Sem saber o que fazer, a mãe de Reginaldo veio conversar comigo e, com algum tato, explicamos a ele que infelizmente sua cegueira impunha alguns limites que precisavam ser conhecidos e respeitados. Hoje, Reginaldo está com 17 anos e cursa a 8ª série. Como moramos no mesmo bairro, Castelo Branco, de vez em quando nos encontramos na rua. Da última vez, ele me confessou que estava suspenso da escola porque tinha tentado beijar algumas colegas sem o devido consentimento. Rimos muito, mas o riso desapareceu completamente dos meus lábios quando, ao nos despedir-mos, ele me disse que iria continuar os seus estudos e seguir o Magistério. Fiquei muito emocionada. Afinal, de alguma maneira acho que consegui passar para ele a importância que tem um professor.
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*Reportagem publicada na edição nº1 - março de 1986
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